Primeira lição de Defesa Contra as Artes das Trevas — O Monstro da Atenção | Parte II
Quando nos queixamos da qualidade da nossa atenção, estamos dizendo que, ao escolher voluntariamente um objeto sobre o qual pretendemos nos debruçar, a atenção nos escapa — se liga a outro objeto, outro assunto... Voa, em suma.
Uma força que só gera frutos quando concentrada, assim, está dispersa, e acabamos não completando a ação, ou não completando satisfatoriamente a ação, ou até nos esquecemos dela, e nos frustramos.
Se só prestamos atenção naquilo que nos interessa e percebemos que nossa atenção escapa: pula de um objeto a outro, aleatoriamente; então é certo dizer que, na verdade, são os os nossos interesses que estão dispersos.
O miado do gato importa tanto quanto o romance que eu decidi ler. Creio que o estou lendo, mas qualquer memória de uma conversa incômoda toma minha tela mental e impõe seu poder atrativo. Da mesma maneira, a fome, o smartphone, a louça para lavar, o refrão do último hit sertanejo e o sono competem por minha concentração com força suficiente para me derrubar: já não leio mais; já não estou prestando atenção na leitura.
Se há um problema de atenção, há um problema da hierarquia de interesses. Muitas coisas nos chamam a atenção espontaneamente, mas somente algumas devem ser importantes. Somente uma pequena parcela deve receber toda a força da nossa cognição.
Por isso, o primeiro passo para dominar a sua força de atenção é observar seu movimento espontâneo.
A princípio, todos os objetos do mundo poderiam ser alvo da nossa atenção. Na escrivaninha sobre a qual rascunho este ensaio, há um notebook, uma luminária, O Fausto de Goethe, o Diário Íntimo de Sully Prudhomme, uma taça cheia até a metade com vinho (de ontem!), um smartphone, papéis, canetas.
Todos esses objetos se manifestam para mim como fonte de interesse. Eles estão, afinal, na minha escrivaninha; eu os adquiri, eu os dispus desta maneira sobre a mesa.
Cada um deles tem uma riqueza inesgotável de informações. Posso contemplar a luminária indefinidamente, tentando desvendar o mistério de seu ser. Os diários de Prudhomme são um registro de primeira categoria de uma vida humana, e não há nada mais interessante que uma vida humana.
Por algum motivo, entretanto, eu me volto para este texto — para esta folha de papel. Me debruço sobre ela; a mão, apoiando a lapiseira, está a postos, à espera da próxima palavra. Vou esperando que as imagens que me ocorrem se tornem uma expressão verbal compreensível. São muitos os elementos que constituem esse ato de escrever — o movimento dos olhos, toda a musculatura esquelética, a coordenação motora fina, o processo do pensamento, da memória. Embora sejam muitos, todos esses elementos permanecem coesos, sincronizados, e servindo a um mesmo fim: a escrita. Quem dá essa coesão, quem torna o ato essa coisa última— neste caso, a escrita — é a força da atenção.
Por que eu escrevo, neste momento, este texto, e me recuso a ler O Fausto, ou a caminhar na rua, ou a comer, ou a pensar vagamente sobre qualquer outra coisa, ou seja, por que sacrifico toda a minha potência de atenção em função deste objeto específico?
Faço isso por causa de uma decisão.
É uma decisão que me faz sacrificar todo o resto para concentrar a minha atenção neste objeto, nesta ação.
Um dos significados da palavra decisão é, justamente, “julgamento”. Há um julgamento no ato de escolher este objeto, e não outro. Há um julgamento na força que me coage a me manter nesta ação, e não em outra.
Agora, neste momento, escrever este texto está em primeiro lugar na ordem dos meus interesses. Ao escolher me manter nesta atividade, eu julgo que, para esta manhã de terça-feira, seja esta a coisa mais importante a ser feita.
Somente com essa decisão eu me torno capaz de modular meu corpo e minha mente para esta ação. Posso ir beber água e retornar ao trabalho, sem dispersão. Estou sob posse da minha força de atenção.
No último post, pedi pra que você anotasse (ou pelo menos notasse) os objetos da sua atenção espontânea.
Agora, faça o exercício: tente descobrir qual é o julgamento que está em jogo em cada uma dessas ações. Qual é o valor que dita essa decisão? Por que cada um desses objetos de atenção pesa mais que os outros, no momento em que você o elege como prioritário?
Nas nossas próximas conversas, tentarei argumentar que o trabalho sobre a atenção voluntária é o trabalho sobre o interesse, e que o trabalho sobre o interesse é um trabalho de julgamento. Com isso, vamos entender como a narrativa da nossa vida está associada à nossa força de atenção.
Essa compreensão naturalmente nos levará aos exercícios práticos de Como Treinar o seu Monstro da Atenção. Chegaremos lá!
Grandes insights e excelente escrita.